Após a chuva, que deixou largos charcos d'agua, preparei meu embornau com todos os meus apetrechos de trabalho, vesti meu blusão e amarrei a costumeira faixa verde e vermelho na cabeça e nela espetei a pena de gavião real que havia encontrado quando me retirei na chapada e que então mostrou-me o caminho, apontando-me a direção do norte. A partir dai meu mestre e tutor me chamava pelo auspicioso nome de Gavião Real, por ocasião de minha consagração às artes shamânicas. Penetrei na estreita trilha encharcada e deslizante, sem olhar para trás, deixando todo o povoado imerso na neblina, subi a trilha por uns 4km e depois entrei ao lado da grande árvore de pequí, esgueirando-me entre os arbustos molhados, ao longe eu via o morro da caveira, como eu o chamava, por parecer uma, subi por uma trilha feita por pequenos animais, esgueirando-me ali e aqui e abaixando-me, olhei para cima e senti que não iria mais chover, pois havia surgido um lindo arco-íris no céu do lado do poente, o sol ja chegava no horizonte, baixei a cabeça e me pus a caminhar, pois ainda tinha alguns kilometros a percorrer.
Levantei a vista depois de ouvir o grito do gavião no alto do morro e percebi que já estava na sombra dele, o gavião era um sinal de boas vindas, então parei e tirei do bolso um patuá que sempre trago quando entro na floresta, ele é um puja ou oferenda. O deixei na base de uma árvore mestra que havia á margem do caminho, em outra vez havia prometido trazer-lhe o patuá com uma representação dos elementos mágicos do altar natural, da encanteria. Fiz-lhe uma reverência e seguí viagem, caminhei por entre duas rochas e percebi que ela servia de dormitório para um pássaro, certamente a uma coruja, resolvi dar uma pausa ali e sentir um pouco aquele lugar, uma brisa fria soprou e imediatamente eu senti que aquele era um "lugar de trabalho" por possuir uma energia espacial, capaz de nos conectar com o 'arcano natural', meditei por uns 10 minutos sentado entre as pedras e saí da meditação ao ouvir um sibilado muito agudo vindo de dentro da floresta, parecia um som de cigarra ao cair da tarde, mas era bem mais agudo. Eu sou acostumado com estas terras, mas ainda não havia ouvido tal som, intrigante.
Me levantei de pronto e seguí viagem, com cuidado para não fazer barulho entre os galhos secos caídos, eu sempre usei umas sapatilhas feitas de tecido grosso (lona) com sola de pneu e cano alto, feitas por mim e sempre reforço com tecido protegendo os tornozelos. A subida do moro havia começado, sempre venho por trás, porque na parte de trás há muitos templos vegetais, onde as dríades fazem morada e são lugares de estudo também, além de possuírem uma beleza supernatural, na base do morro, a vegetação é um pouco mais espessa e densa, então tenho que me abaixar para passar, nesta passagem percebi novamente o assobio fino, muito provavelmente não era um silfo, pois eles preferem as copas e lugares mais altos, este som vinha ao nivel do chão, fiz um sinal de reverencia ao lugar e passei, logo encontrei as rochas, são arenitos antigos, muito respeitáveis e que eu devo escalar com cuidados, mas o caminho já está bem delineado, quando o velho pajé me trouxe aqui a primeira vez, ele me disse que haviam santuários ocultos e tesouros encantados no maciço de arenito, que corresponde à parte do meio da escalado, haviam pequenas grutinhas, eram lares de ninfas muito zelados e eu sempre trago pequenos cristais comigo para lhes presentear, elas são muito tímidas, mas muito belas, raramente se deixam ver.
Na parte final da escalada, eu tinha que andar por parapeitos estreitos, apoiado em arvoredos, esta subida se faz em três estágios, na primeira parte há a vegetação densa, depois as pedras de arenito antigo e então os parapeitos estreitos e subidas escarpadas com pedrinhas soltas, e lógico que não é por acaso, estes estágios correspondem as três etapas da iniciação xamânica, um dia me disse o velho pagé. Este fora o meu mestre espiritual por um longo tempo da minha jornada, ele havia me transmitido parte de seu legado e havia me treinado no conhecimento das plantas, das rochas e dos espiritos da natureza e depois partira para sua morada estelar, em albion, na constelação das pleyades. Este mestre completou sua longa jornada de 3.600 anos neste amado planeta, tenho em meu embornau um desenho que ele me mostrou uma vez, uma estrela dourada de doze pontas, dentro de dois triângulos, um com o vértice pra cima, outro com o vértice pra baixo, no parte de cima havia um arcoíris e na parte de baixo uma pomba com as asas abertas, ele havia me dito que este era a marca de sua escola, onde ele instruiu muitos alunos, incluindo a mim.
Na verdade a presença deste mestre começou quando eu era criança, adorava ver o arco-íris, mas ninguém conseguia me explicar como ele se formava, eu achava que se eu entrasse numa ponta sairia mulher na outra ou que encontraria uma butija de ouro, então um belo dia convidei alguns amigos da minha vila para irmos descobrir o local onde o arco-íris toca a terra e fugimos de casa, sem avisar a ninguém, a não ser minha velha tia, a quem eu contava tudo e que sabia me ouvir com paciência, mas ela apenas riu de mim e me deixou ir. Ao longo da estrada que meus amigos corriam ao encontro do arco-íris, eu parei e olhei para o céu, o arco-íris estava sobre mim, mas meus amigos continuavam correndo até desaparecerem na curva do caminho, eu fiquei paralisado observando, então ouvi a voz do mestre pela primeira vez, ele dizia, esta é a ponte entre o homem e Deus! Nunca esquecerei este momento.
A noite estava próxima e eu me aproximava do local onde realizaria a minha vigília, subi lentamente a escarpa com pedrinhas rolantes, momento pedregoso, pois era o derradeiro desafio, se alguém cair alí, poderá rolar morro abaixo, mas eu aprendi uma forma de caminhar em terrenos assim, com os joelhos flexionados e de lado, assim se eu caísse, teria chance de me apoiar e me reequilibrar, ao chegar perto do topo, parei encostado a uma árvore de candêia e de súbito ouvi novamente o assobio que havia escutado por duas vezes antes, eu sabia o que seria, um pássaro, uma ave noturna, não discerni o que seria, mas entendi que era algo mágico, pensei em responder com outro assobio, mas um segundo pensamento evitou que o fizesse, portanto, continuei a subida, pois o cume estava logo ali. Pronto! Estava logo ali a grande pedra plana, fiz-lhe uma reverência e me aproximei. Retirei do meu embornau, o embrulho em seda verde, onde estavam meus instrumentos, acendi um incenso xamânico feito de cascas sagradas, resinas de almécegas e carvão e o acendi, afixando-o numa ranhura na pedra, antes de subir naquela pedra eu devia me preparar e preparar o lugar, sentindo primeiramente a superfície da pedra com as mãos, de olhos fechados e depois observar suas ranhuras, buscando por algum linguagem ou mensagem em linguagem elfica, então fui para a parte mais alta e aspergi água fluidificada de orvalho colhido numa flor de lírio antes do nascer do sol, aspergi esta água nas seis direções e no centro da pedra, então dei a volta para a parte leste e subi na pedra, retirei a pena de gavião, espetada na faixa em minha cabeça e fiz os sinais sagrados que o velho pajé havia me ensinado uma vez, nesta mesma pedra, saudando os cinco elementos da natureza, posso ver ainda seus gestos respeitosos e lentos espalhando fumaça de seu cachimbo sagrado, gesto que ele havia me explicado como um reverencia aos elementos e à mãe natureza.
Eu toquei a pedra e ainda a senti morna do sol, sentei-me ali de pernas cruzadas, a exemplo dos grandes yogues e relaxei, colocando a mente em um estado de onisciência, abandonei o mundo das coisas, dos rótulos e palavras, para mergulhar em um mundo puramente energético e luminoso. Não sei quanto tempo estive neste estado, pois estava muito absorto, ao sol parecia ter ido comigo na minha meditação e agora iluminava a outra face da terra, dando lugar para a senhora noite, uma exímia bruxa. O piado de uma coruja próxima me trouxe de volta, ela repetiu três vezes o seu canto (novamente o numero três), estava pousada bem perto, no galho baixo de uma Jurema branca, era uma coruja mestra e me olhava fixamente, eu senti, era o aviso que eu esperava para começar o meu trabalho.
Soprou um vento fresco vindo de baixo, do vale e do leste, este vento parecia varrer a minha alma, outrora eu teria molhado as calças de medo, mas aprendi a linguagem da natureza e sei que ela é um elo entre o homem e o divino. Então saudei a presença daquele deva na minha cerimônia. Fechei os olhos com os braços abertos e iniciei minha lista de convidados, invocando os seres divinos representantes das florestas puras, os seres da cidade de cristal, Celestia. As legiões de encantados servidores da natureza, os devas do ar, do fogo, da água, da terra e do éter e por fim, a presença iluminada do meu velho mestre de Albion, o pajé Manuk Ahau, das pleyades. Estava completo, de dentro do embornau retirei sete objetos sagrados, um deles era o cachimbo sagrado, com um patuá de fumo igualmente sagrado, preparado com três ervas de cura espiritual. Acendi uma outra vara de incenso da terra na borda da pedra, seu perfume doce e mistico se espalhou logo pela região, cujo fumo era levado por uma horda de silfides, acendi um pequenino círio de cera amarela no centro da pedra e comecei a preparação do cachimbo, este é um momento especial, de muita reverencia, com o fornilho apontado para mim, encho uma vez calcando com o polegar, depois volto o fornilho cheio na direção oposta a mim e o elevo às cinco direções, ao norte, leste, sul, oeste e para o alto, então me inclino em reverencia e acendo o cachimbo, aspirando a chama acesa, aspiro e aspiro, então uma longa respiração, sinto o sabor das ervas queimadas, silenciosamente pito o cachimbo que logo termina, então encho mais uma vez e mais uma, depois o limpo e o enrolo no seu pano e o guardo cuidadosamente no embornau. Um silencio absoluto, cortado apenas pelo açoite do vento nas árvores mais próximas.
A imagem do meu mestre me vem na mente, ele está cantando, vestido de branco cintilante e eu o acompanho na sua cantilena, uma velha conhecida que fala de um tempo muito além, além de tudo o que é conhecido, quando o homem se vestia de luz e habitava as estrelas, um canto emocionante pelo tom de sua voz tão vetusta e embargada, intensa reverencia ao universo e ao grande artista que o criou, ao som desta canção me vejo diante de mundos em formação, galáxias inteiras surgiam e desapareciam diante de meus olhos e eu compreendi a respiração de Deus, no indo e vindo da criação, embalado no canto do velho mestre Manuk Ahau, retornei a tempos imemoriais e vi vastas espécies de criaturas, seres inteligentes que habitaram a terra outrora, eu senti a terra e me tornei uno com ela, pude sentir sua expressão geológica, penetrando profundamente em seu interior, passando por camadas da crosta terrestre em direção a um sol interior, um pequeno sol que girava em torno de sí, era o núcleo do planeta, um imenso cristal ígneo em forma de diamante, que pulsava em intensa vibração, meu mestre penetrou nele, como se tivesse se fundido, eu o segui e penetrei em sua parede de chamas, em seu interior percebi um mundo inteiramente iluminado e algo como um lago tranqüilo, verde-esmeralda, em suas margens havia uma linda dama que enchia um vaso com água, ela me olhou e sorriu e imediatamente me deu de beber, colocando uma concha em meus lábios, eu bebi e me refresquei, aquela bela moça sorria encantadora, imaginei ser ela uma deidade muito evoluída, por habitar o coração da terra, mas imediatamente aquele mundo lá dentro se dissolvia em uma luz muito forte eu fui sugado de volta através de um túnel de luzes coloridas, começando do vermelho-alaranjado até o violeta, seguindo o espectro cromático e eu voltei a ouvir a voz do meu mestre que continuava a cantar, abri meus olhos, estava em uma câmara a meia luz, as paredes repletas de cristais de ametista, que davam uma cor violeta no ambiente, o mais incrível é que eu podia sentir o cheiro da cor, a temperatura da cor e o violeta tinha um cheiro doce, um aroma quase floral e era "frio" na pele, me senti tão relaxado e compreendi que aquele lugar era como uma câmara de cura.
Me senti absorto pela qualidade da energia que havia ali, o meu mestre estava no canto, de pé e cantando, então se abre uma tela e eu vejo de cima a Encanteria, a imagem descia do alto até pairar cerca de 1km acima do vale, eu vi os sete morros que circundavam um vale e lá embaixo, no centro dele havia uma pequena floresta, no meio desta um circulo de pedras com um monolito ao centro, de lá se irradiava um brilho muito forte que se erguia alto e de lá se dividiam sete raios, cada um tocava o cume de cada um dos sete morros, imediatamente um circulo se formou em torno do vale e eu compreendi que aquela era a encanteria, ali perto, mais afastado, no cume de um antigo cume, se formou uma nuvem que formava uma espiral, eu olhei atentamente para ela e minha visão foi aproximando cada vez mais, até que reconheci, aquele era o lugar onde eu estava e ficava exatamente na borda do círculo do lado leste. Aquele era um grande mistério que meu mestre me mostrara, eu desci até o lugar e vi um velho indio sentado de pernas e braços cruzados, sobre uma pedra circular, ali no centro havia um brilho muito bonito, era de onde vinha a luz, eu mirei este brilho e ele foi crescendo e crescendo, até que me tomou por inteiro, eu desci em espiral por ele e quando despertei, esta em minha posição original sobre a pedra, uma bruma esbranquiçada se formara no fundo do vale, soprava um vento de leve, eu inspirei profundamente e agradeci de todo meu coração ao grande artista e a Manuk Ahau, meu mestre, por aquela visão.
Tirei do meu embornau uma pequena flauta de bambú que havia feito em uma visita ao olho d'agua de Shan, um santuário natural que conheci a léguas dalí, eu soprei nela uma canção de amor. Minúsculas luzes se juntaram na borda da pedra, elas traziam um aroma incomum, de ervas frescas, eu toquei com muito zelo e as luzes bailavam, literalmente, então um delas se aproximou e tocou a minha face, eu esbocei um sorriso e a musica se espalhou, até que foi diminuindo em um som agudo. Me inclinei em reverencia, neste momento caiu um orvalho fino sobre mim e eu senti que aquele era o grande momento, pois olha de lado para o sul, notei uma presença feminina feita de luz, eu me inclinei e fechei os olhos com as palmas das mãos para cima, em acolhida, a luz se aproximou e uma melodia surgiu nos meus ouvidos, era um som indefinido, mas era harmônico, a presença se aproximou e tocou o alto da minha cabeça, parou diante de mim e voltou a seguir caminho, passando pelo lado direito e sumiu na mata acima do morro. Quando ela passou a claridade era tão grande que vi através das pálpebras fechadas, faíscas de luz e chamas multicoloridas. Senti um toque sobre meu chakra da corôa que esfriou o topo da cabeça, é uma presença fria. Sempre fechamos os olhos diante destas presenças, por vários motivos, por respeito e reverencia e por não sabermos a profundidade deste encontro, por isso esta é uma boa atitude. Eu senti que aquela aparição seria a senhora das ninfas, talvez agradecendo pelas oferendas deixadas no santuário abaixo de onde eu estava. Em seguida me deitei na pedra, relembrando os ultimos acontecimentos e aprendizados, por fim me levantei, pela primeira vez durante o trabalho, olhei para cima, as pleyades estavam lá bem visíveis, então abri os braços, fechei os olhos e entoei uma cantilena para o meu mestre...Que tinha um refrão era assim:
_Sob o teu olhar, sinto a proteção, na longa jornada noite adentro
ouço a voz do coração, és minha companhia celestial, eu sou o teu rebento
puro alento divino, teus braços fortes me acolhem, estou sedento
banha-em em a tua luz, meu mestre divinal.
Ao abrir os olhos notei a chegada da aurora, inspirei profundo, era chegado a hora de me preparar para retomar o caminho, mas de súbito ouvi novamente o assovio, mais forte e mais perto, olhei na direção em que o ouvi e vi um pequeno vulto vindo por baixo dos arbustos, esperei até que ressurgisse atrás da moita e vi, era um pequeno passarinho, ele se aproximava, achei que ignorava a minha presença, mas ele se aproximava mais e mais, permaneci imóvel, então ele passou na minha frente e vi que trazia algo no bico, era uma pequena pena, verde cintilante, ele a largou e o vento a trouxe pra mim, ele logo desapareceu entre os arbustos acima. Sorri emocionado, começando a derramar algumas lágrimas, a pena veio parar na minha mão esquerda, eu a coloquei sobre o entre-cenho umedecido de orvalho, ela ficou ali, então eu mirava o avanço da aurora e lembrei do velho Manuk, sua voz se fez ouvir, ele dizia em sua lingua:
_Viltak al nitak mirtzan (Seja bem vindo, viajante da terra mágica).
Eu compreendi imediatamente, que ele havia me dado um presente místico, que seguiria comigo em minha jornada pela terra mágica, a Encanteria
O sol apontou no horizonte leste e eu lancei meu grito xamânico, que ecoou até os confins do vale. Recolhi alguns os objetos sobre a pedra, ajeitei meu embornau no ombro, me calcei e deixei o lugar, descendo por um outro caminho, pelo lado oeste do morro, ao chegar do outro lado, eu tive uma bela vista do vale, ainda imerso em um pouco de noite e lembrei da visão das luzes durante a jornada, entendia que ela me revelava sobre a ativação dos meridianos de energia, as linhas leys, que re-energizariam novamente a eira sagrada, do antigos sacerdotes da terra. Agora eu saberia como fazê-lo, mas esta era uma outra tarefa,
para um pouco mais adiante.
Continuei meus estudos da geomância sagrada dos antepassados e tive outros contatos com o mestre Manuk Ahau, ele ainda me ensinaria outras coisas, entre elas, como viajar em espírito ao seu planeta de origem, Albion, mas essa é uma outra história.
Ani uruk sitak. (Que todos os seres retornem à luz)